O olhar do professor
Rubem Alves
[...] Nietzsche disse que a
primeira tarefa da educação é ensinar a ver. É a primeira tarefa porque é
através dos olhos que as crianças, pela primeira vez, tomam contacto com a beleza
e o fascínio do mundo. Os olhos têm que ser educados para que a nossa alegria
aumente. Os olhos das crianças não vêem a fim de… Seu olhar não tem nenhum
objetivo prático. Elas vêem porque é divertido ver.
Já li muitos livros sobre psicologia da educação, sociologia da educação,
filosofia da educação, didática – mas, por mais que me esforce, não consigo me
lembrar de qualquer referência à educação do olhar, ou à importância do olhar
na educação, em qualquer um deles. Acho que a experiência de Walt Whitman teria
sido diferente se sua professora tivesse feito pós-graduação em educação.
O que é um olhar? O olhar não se encontra nos olhos. Observação de Sartre: “O
olhar do Outro esconde seus olhos”. Observação de Cecília Meireles: “O sentido
está guardado no rosto com que te miro”. Eu não te miro com os meus olhos. Eu
te miro com o meu rosto. Os olhos são peças anatômicas assustadoras em si
mesmas. Olhos não têm sentido. Eles nada dizem. Mas o rosto com que te miro
guarda um segredo. Não miro com os olhos. Miro com o rosto. É o rosto que
desvenda o mistério do olhar.
O rosto da mãe revela à criança o
segredo do seu olhar. Isso é verdade até para os animais: o olhar de um cão… Roland
Barthes é uma exceção. Ele não tinha medo de pensar seus próprios pensamentos,
mesmo que não pudessem ser cientificamente comprovados. Às vezes, a exigência
de provas é uma manifestação de burrice. Acho que se ele tivesse que resumir o
que pensava sobre educação numa única frase, ele diria: “No princípio é o olhar…”.
A educação acontece na subtil
trama entre os olhares da mãe e do filho. Pois é aí que se revela o desejo. Vejam
esta deliciosa descrição da mãe ensinando o filhinho a andar: quando a criança aprende a andar a mãe não
discorre, nem demonstra, ela não ensina a andar, ela não representa (não anda
diante da criança), ela sustenta, encoraja, chama (recua e chama), ela incita e
cerca, a criança pede a mãe e a mãe deseja o andar da criança.
Van Gogh tem uma delicada tela que representa esta cena: o pai, jardineiro,
interrompeu seu trabalho; está ajoelhado no chão, com os braços estendidos para
criança que chega conduzida pela mãe. O rosto do pai não pode ser visto. Mas é
certo que ele está sorrindo. O rosto-olhar do pai está dizendo para o filhinho:
“Eu quero que você ande”.
É o desejo de que a criança ande;
desejo que assume forma sensível no rosto da mãe ou do pai, que incita a
criança no aprendizado dessa coisa que não pode ser ensinada nem por exemplos,
nem por palavras. Os educadores acadêmicos dirão que isso é piegas, romântico –
não é científico. É verdade. O que eu disse não pode ser dito cientificamente.
Só poeticamente.
Acontece que, como disse Bernardo
Soares, o fato é que somos incuravelmente românticos! Assim, sendo a educação
uma coisa romântica (não consigo pensar uma criança sem ternura), eu lhe digo:
“Professor: trate de prestar atenção no
seu olhar. Ele é mais importante que seus planos de aula. O olhar tem o poder
para despertar e para intimidar a inteligência. O olhar é um poder bruxo!”.
Sartre
concorda comigo: “De repente ouço passos no corredor. Alguém está olhando para
mim. Significa que eu, repentinamente, sou afetado no meu ser, que modificações
essenciais aparecem na minha estrutura…” Ele não vê o rosto. Os passos o
informam de que há olhos que o observam. Ele perde sua naturalidade. Os olhos
que ele não vê, mas que – ele sabe sem ver – estão olhando para ele provoca
alterações no seu corpo.
O seu olhar, professor, produz alterações no corpo da criança. Adélia Prado,
brincando, disse a mesma coisa: “O meu
lábio zombeteiro faz a lança dele refluir”. Lança? Símbolo fálico. A lança
não deixa de existir. Mas o lábio zombeteiro que revela o mistério do
rosto-olhar a altera. A lança, humilhada, esconde-se, foge, torna-se incapaz do
ato do amor. Lança? Já sugeri a relação
metafórica entre a lança fálica e a inteligência.
Como a lança fálica, a inteligência ou se alonga e se levanta
confiante para o ato de conhecer (lembre-se de que, na Bíblia, quando se quer
dizer “fazer amor” se diz “conhecer”…), ou se encolhe, flácida e impotente.
O olhar do professor tem poderes semelhantes. É um poder bruxo. O olhar de um professor tem o poder de
fazer a inteligência de uma criança florescer ou murchar. Ela continua lá,
mas se recusa a sair para a ventura de aprender.
A criança de olhar amedrontado e vazio, de olhar distraído e perdido. Ela não
aprende. Os psicólogos se apressam em diagnosticar alguma perturbação
cognitiva. Chamam os pais. Aconselham-nos a enviá-la para terapia. Pode até
ser. Mas outra hipótese tem que ser
levantada: que a inteligência dessa criança que parece incapaz de apreender
tenha sido enfeitiçada pelo olhar do professor. Por isso lhe digo,
professor: cuide de seus olhos…